Nesta segunda-feira, dia 6 de maio, aconteceu em Brasília uma audiência pública do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional para debater a regulação dos serviços de streaming. No último dia 16 de abril, o PL 2.331/22 foi aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, partindo então para a Câmara dos Deputados, para ser cotejado com o PL 8.889/17, seguindo nova tramitação.
O debate, que contou com a participação de representantes dos elos do setor audiovisual, da Ancine, do Governo e das plataformas estrangeiras, deixou evidente que existem consensos entre todos esses agentes, tais como a necessidade de uma regulação e o estabelecimento de mecanismos que possibilitem um contínuo crescimento e desenvolvimento da indústria audiovisual no Brasil. Mas há muitas divergências.
Os pontos de discordância de dão principalmente em relação à tributação e o percentual estabelecido de cobrança de Condecine das empresas de VoD em todas as modalidades. O texto aprovado no Senado determina a incidência de Condecine de 3% da receita bruta para todos os serviços, incluindo as receitas publicitárias das plataformas de compartilhamento, como o YouTube – que foram incluídas na definição de serviços de streaming após parecer da Ancine – a depender da faixa de faturamento da empresa. O texto do PL 8.889 que tramita na Câmara, por outro lado, fala em 6%.
O texto do Senado abarca ainda a possibilidade de abaterem até 60% do valor devido a contribuição com aplicação direta de recursos equivalentes em projetos de capacitação e de preservação do setor audiovisual, em produção de conteúdo brasileiro em parceria com produtoras brasileiras independentes, na aquisição de direitos de licenciamento de conteúdo brasileiro de produtora brasileira independente e na implantação e manutenção de infraestrutura para a produção de conteúdos audiovisuais no Brasil. Já o texto da Câmara fala em 50%, e ainda assim com aplicação bem mais restrita.
Tributação distinta para diferentes modelos de plataforma
A fala do diretor da Ancine, Tiago Mafra, reforçou a manifestação da agência à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal sobre a cobrança de Condecine das plataformas de VOD feita em abril, e que incluiu na mesma definição de VOD as plataformas de compartilhamento de conteúdo, como o YouTube. Para ele, plataformas de streaming “clássicas”, essas outras de compartilhamento e até janelas de distribuição mais recentes, como os canais FAST, disputam a atenção do consumidor e as receitas publicitárias, além de compartilharem de uma mesma estrutura de entrega de conteúdo audiovisual, e, portanto, devem ficar sob a mesma regulação e pagar Condecine. “Mas tem que ter um tratamento diferenciado. A tributação de uma plataforma de compartilhamento não pode ser a mesma de uma que trabalha com faturamento por assinatura. A tributação e a regulação não devem incidir da mesma forma sobre o ‘VOD clássico’ e as plataformas de compartilhamento. E, em hipótese nenhuma, a tributação deve recair sobre os criadores de conteúdo ou consumidores”, declarou.
“Os PLs que tramitavam anteriormente ao trabalho do Senador Eduardo Gomes e do Deputado André Figueiredo – até por conta da evolução do mercado até aquele momento, pré-pandemia – eram muito centrados no modelo do ‘VOD clássico’, como Netflix e Disney+, por exemplo. Mas durante a pandemia e no pós vimos um aumento da participação e disputa por atenção dos consumidores também nessas outras plataformas. Tem decisão que é técnica e tem decisão que é do representante eleito. Questões de cota, percentual de tributação e obrigações daqueles que operam devem ser opções do governo e do poder legislativo. Já a Ancine atuou para esclarecer que mercado é esse”, analisou Mafra.
O diretor da Ancine elencou alguns eixos essenciais da iminente regulação – cotas de conteúdo brasileiro, proeminência e contribuição financeira dos serviços, direta ou indiretamente, para a produção de obras nacionais – e enfatizou a necessidade de tornar cada vez mais pujante o mercado das produtoras brasileiras independentes do Brasil – que hoje, somam mais de dez mil empresas – afirmando que isso seria feito justamente com uma regulação pautada por esses três eixos principais.
Claro quer regulação leve
Para Fábio Andrade, membro do Conselho de Comunicação Social e VP de relações institucionais da Claro, principal operadora de TV por assinatura do Brasil (e que tem sua estratégia de distribuição de conteúdos cada vez mais atrelada a uma plataforma OTT), a preocupação maior da empresa é que se crie, agora, uma regulamentação para streaming engessada. “Nossa preocupação é que se crie no streaming uma regulamentação engessada como foi na TV paga, o que pode inibir investimentos e o crescimento do setor. Tem que regular e ter parâmetros, mas sem criar um novo SeAC”, diz ele. Uma das preocupações é que a Condecine seja elevada, porque vai aumentar a carga tributária e recair sobre o consumidor final. “Se a gente aumenta as taxas que já existem, ou cria novas, vamos ter o consumidor afetado”.
Cobrança igual para todos
Representando o setor audiovisual e também o Conselho Superior de Cinema, estavam presentes na audiência Rosana Alcântara, advogada especializada em regulação do audiovisual; Cíntia Domit Bittar, parte da diretoria da API – Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro; e Leonardo Edde, produtor e presidente do SICAV – Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual.
Alcântara aproveitou para lembrar que as políticas de financiamento e os marcos regulatórios têm desenvolvido com êxito o audiovisual brasileiro como um todo nos últimos 30 anos, tanto do ponto de vista de performance artística quanto na ferrenha disputa pelo marketshare e atenção dos consumidores. E, nesse sentido, pontuou que o conteúdo brasileiro independente está na base desse desenvolvimento exitoso do audiovisual do País e que, por isso, é essa cadeia da produção independente que deve ser priorizada na eventual regulação do streaming. Como exemplos positivos de regulações lá fora que foram bem sucedidas, ela citou a França, destacando suas regras de investimentos diretos e indiretos e as cotas para conteúdo nacional dentro dos serviços.
Regulação para corrigir desequilíbrios
Já Leonardo Edde, do SICAV, afirmou que uma regulação bem feita será aquela capaz de corrigir o desequilíbrio de poder econômico que existe entre os players. “É uma tentativa de tornar essa concorrência um pouco mais justa, evitar a formação de oligopólios e monopólios e criar oportunidades de crescimento do setor no Brasil. O impacto de uma boa regulação é defender a cultura brasileira, o que consequentemente significa defender a economia brasileira. A regulação deve ampliar e diversificar o mercado, criar uma lógica de desenvolvimento e gerar divisas para o País. E deve priorizar empresas independentes brasileiras, dando um tratamento diferenciado a elas, como plataformas de streaming brasileiras, radiodifusão e canais da TV paga, que já estão sob outras regulações”. O produtor acrescentou que deve ser feito um estudo de equilíbrio para se chegar ao valor de cobrança da Condecine. “Porcentagem é porcentagem. O que importa é o que vem para o desenvolvimento do setor. Lembrando que a Condecine não vai só para a produção, mas também distribuição, capacitação, regionalização e criação de infraestrutura. Os ativos precisam ficar aqui”. E concluiu: “É nossa obrigação aumentar a possibilidade de exportação dos produtos brasileiros. É um ambiente que não deve depender de tecnologias. Todos devem estar dentro dessa mesma regulação”.
Cíntia Domit Bittar, que já havia feito algumas considerações a respeito do PL aprovado, mencionou que a competência de fiscalização por parte da Ancine num cenário de plataformas de streaming reguladas é, felizmente, outro consenso entre os agentes. E, em relação à Condecine, reforçou o ponto levantado por Edde: “É importante que não haja divergência de tributação entre as plataformas. A lei agora deve ser clara, limpa e objetiva, atendendo ao favorecimento da indústria brasileira independente”. Bittar também lembrou que garantir os direitos da propriedade dos conteúdos aos produtores brasileiros é outro ponto inegociável na regulação do VOD, bem como reparar desigualdades históricas e garantir equidade de gênero e raça.
MinC apresenta pontos inegociáveis
A Secretária do Audiovisual do MinC Joelma Gonzaga participou de forma remota da audiência e endossou as falas dos representantes do setor, destacando que, para o Ministério da Cultura, são pontos básicos e inegociáveis na regulação a proteção ao direito autoral e patrimonial da produção brasileira; as cotas de conteúdo nacional e ferramenta de proeminência; a implantação de Condecine de forma compatível com a alíquota das demais janelas de exibição do País e em paridade com as práticas de outros países, incidindo sobre o faturamento bruto das empresas; e a equidade no audiovisual, corrigindo distorções já identificadas nesse sentido. Gonzaga também anunciou que o Conselho Superior de Cinema teve uma “longa reunião” na última semana na qual foi aprovada uma moção com diretrizes e conceitos básicos sobre a regulação do VOD, que devem ser publicados nos próximos dias, para auxiliar no debate legislativo e se somar ao debate no parlamento. “O Conselho deve ser ouvido”, declarou.
Plataformas estrangeiras pedem “flexibilidade”
Andressa Pappas é presidente da MPA (Motion Picture Association) no Brasil e representa Disney, Netflix, Warner Bros. Discovery, NBCUniversal e Paramount – ou seja, praticamente todas as principais plataformas de streaming estrangeiras que operam por aqui. Em sua fala, a executiva frisou que essas empresas têm sedes no Brasil, empregam e qualificam profissionais brasileiros, geram renda e recolhem tributos no País, e que todos os seis membros têm investido de forma “crescente e consistente” na produção de obras audiovisuais brasileiras, do ponto de vista qualitativo e também quantitativo, e não só para o público brasileiro, mas também o global.
Mas o principal ponto da fala de Pappas foi a defesa de uma diferenciação entre as diferentes plataformas digitais: “Não é um segmento homogêneo. Nós somos provedores de serviços e conteúdos e, por isso, não podemos nos encaixar na mesma categoria das plataformas de compartilhamento de vídeos ou de redes sociais. Os modelos de negócio são completamente diferentes. Plataformas assim fazem intermediação com o usuário ou servem de ponte entre usuários empresariais e finais. Já nós oferecemos serviços e produtos diretamente aos consumidores por meio de uma curadoria. Não apresentamos os mesmos riscos e desafios das outras plataformas”.
Pappas falou sobre “respeito a esse complexo ecossistema que sustenta a indústria audiovisual”, e que a sustentabilidade dos bons resultados desse mercado depende da capacidade do Brasil de seguir atraindo investimentos e inovação para o setor. Inclusive, em relação aos investimentos, ela afirmou que ambos os formatos – por meio de alocação direta dos recursos privados de determinada produção ou uso de mecanismos de incentivo – têm demonstrado sua importância, que um não é melhor do que o outro, e que a convivência desses dois formatos confirma um dos principais elementos de qualquer regulação: “É necessário que haja flexibilidade em qualquer regulação que seja feita no sentido de permitir uma integração entre um investimento que é feito diretamente pelos provedores de serviço na produção de obras brasileiras e outros mecanismos de incentivo. Isso permite que haja uma sustentabilidade da enorme quantidade de modelos de negócio. Qualquer iniciativa que pretenda regular o serviço sob demanda precisa respeitar a natureza dos serviços”.
Na visão da executiva e das empresas que ela representa, uma regulação “excessivamente intervencionista” pode gerar efeitos contrários aos pretendidos – em vez de colaborar para o desenvolvimento sustentável do setor, pode reduzir seus investimentos, gerando um impacto negativo na exportação de conteúdos, um desequilíbrio no ecossistema de profissionais e redução no potencial de crescimento da indústria. “São as dinâmicas flexíveis do mercado brasileiro de hoje que têm possibilitado esse crescimento expressivo do setor. Uma regulação intervencionista pode interromper esse ciclo virtuoso, impor barreiras para a entrada de novos players e criar ônus para as plataformas”.
Para além dessa questão da flexibilidade, Pappas disse que a regulação deveria garantir o respeito às decisões estratégicas dos provedores de serviços acerca do que vão produzir, como vão ofertar e que público querem atingir, e a mínima onerosidade, já que as provedoras locais e estrangeiras já estão, assim como qualquer outra atividade econômica, sujeitas a altas cargas tributárias, e uma regulação equivocada poderia reduzir investimentos no setor e encarecer os serviços aos consumidores. Por fim, ela ainda pediu que sejam respeitados os interesses individuais dos consumidores e que sempre se permita a parceria entre os variados elos da cadeia produtiva, o que fortalece talentos, criatividade e a própria concorrência.
Conselheiros
Participaram da discussão na audiência do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional os conselheiros Sonia Santana, Fabio Andrade, Davi Emerich, João Camilo Junior, Maria José Braga, Patrícia Blanco, José Antônio Silva, Valderez Donzelli e Luis Antonio Gerace, que apresentaram preocupações com os impactos de uma eventual regulação do streaming para o consumidor final em termos financeiros, pensando no percentual de cobrança de Condecine das plataformas, e ainda sobre os caminhos da regulação para incentivar a produção audiovisual nacional.
Santana, por exemplo, que preside o Sindcine, ressaltou que, para os trabalhadores especialmente, a regulação é muito importante, uma vez que eles cresceram com a introdução das plataformas no mercado nacionais mas, ao mesmo tempo, sofreram. “Somos gratos, mas temos questões em relação ao trabalho. As plataformas de fato produzem conteúdo nacional, mas não deixam resíduos patrimoniais para as empresas. As produtoras ficam com poucos resíduos para sua saúde financeira”, alertou.
Já João Camilo Júnior, líder da área de relações institucionais e assuntos regulatórios do SBT, enfatizou a preocupação com o consumidor final. Nesse sentido, ele citou que o canal está em vias de lançar uma plataforma de streaming totalmente gratuita, que vai funcionar como se fosse uma extensão da TV aberta. “Pensamos muito em quem é o ‘rei’ desse processo – se é o conteúdo, o investidor – mas a verdade é que é o consumidor final. Então existe essa preocupação com o impacto para ele e a necessidade de garantir que a população não seja prejudicada nesse processo”, afirmou.
Donzelli, por sua vez, que é conselheira da SET, mencionou a nítida diferença entre o conceito de streaming, sendo a infraestrutura, e os tipos de serviço de VOD, e que a partir daí a legislação deve tomar cuidado para não fixar tecnologias ou tipos de tecnologias e, assim, acabar engessando o crescimento e o surgimento de novos tipos de serviços.
O CCS é um órgão específico do Congresso Nacional criado pela Constituição Federal para auxiliar os parlamentares nos assuntos relacionados a comunicação e liberdade de imprensa. O conselho elabora, por exemplo, estudos, pareceres e recomendações solicitadas pelos senadores e deputados.
(Foto: Geraldo Magela/ Agência Senado)
Fonte: Agência Senado.